Por Juliana Chinen
Há figuras que aparecem para o mundo e depois saem do campo de evidência. Não ficamos sabendo de novas ideias e projetos, mesmo quando um resquício do pensamento delas é suficiente para trazer reflexão e incentivar a fazer do mundo um lugar melhor. Mas guardamos a certeza de que elas continuam suas batalhas pela busca de um mundo mais justo, só que lenta e constante, muitas vezes com outras estratégias.
É com essa reflexão que penso na iraniana e Nobel da Paz em 2003, Shirin Ebadi. Em 1978, Ebadi tinha se tornado a primeira juíza da história do Irã, em uma época de revolução que levou à derrubada do xá Mohammad Reza Pahlavi. Para conquistar apoio à sua causa, clérigos abriram os braços para todos os tipos de oposição – socialistas, comunistas, defensores dos direitos das mulheres e tantos outros. Foi assim que obtiveram apoio da juíza Ebadi. Em 1979, o novo regime encabeçado pelos religiosos islamitas foi ajustando sua liderança e passou a demonstrar quais eram as suas reais diretrizes: prendeu e executou boa parte daqueles que o haviam apoiado. E foi assim para Ebadi, que de juíza foi rebaixada para escrivã; e depois, de escrivã para secretária, sendo mantida no mesmo Tribunal onde um dia ela havia liderado.
A lei imposta pela nova ordem daria à mulher a metade do valor dado a um homem. Quando Ebadi saía para viajar, era barrada por não estar acompanhada de um parente homem. Quando foi se casar, foi preciso que o noivo abrisse mão em cartório dos direitos que a nova lei lhe dava, como: o marido ter a custódia dos futuros filhos em caso de divórcio e o direito de “possuir” mais três esposas, colocando-as na mesma casa da mulher titular. Neste ínterim, o regime ainda prendeu e matou um membro da família de Ebadi. E os anos se arrastavam enquanto havia tantas mudanças à sua volta.
Somente na década de 1990, Ebadi voltou a trabalhar como advogada. Para seu escritório, assumiu em sistema pro bono os casos de violação de direitos humanos, debruçando-se sobre textos religiosos para rebater interpretações corânicas usadas contra seus clientes, por não concordar com a submissão da lei à religião.
Mesmo no exercício de seu ofício, Ebadi chegou a ser presa enquanto defendia um caso de um estudante espancado até a morte nos protestos que aconteceram em 1999. Mais tarde, enquanto representava os filhos de um casal de intelectuais mortos pelo regime, descobriu documentos que autorizavam o assassinato dela.
Talvez motivada pela indignação e clareza quanto ao absurdo que estava à sua volta, Ebadi não emigrou para o Ocidente naquela época. E tampouco sucumbiu à frustração. A indignação a motivou para assumir casos fadados ao fracasso – e muitos fracassaram mesmo – mas jogaram um holofote sobre as ações mais horríveis do regime iraniano e deram esperança sobre o sistema judicial do país.
A lição de Ebadi demonstra que há outros canais para extravasar a raiva e canalizá-la de forma produtiva. Se a raiva e a indignação fossem demonstradas de modo claro e agressivo, provavelmente ela sabia que teria sido enforcada e exibida pelas ruas de Teerã. Ao invés disso, ela identificou os meios com os quais poderia lutar contra o regime, e assim advogou brilhantemente, ainda que em casos perdidos.
Mas com o tempo, Ebadi passou a viver na Europa, sustentando a condição de exilada de seu país e atuando como ativista dos direitos humanos, onde reside até os dias de hoje. Quem registrou esse episódio foi o jornalista Maurício Horta no livro “O lado bom dos seus problemas – defeitos podem ser suas maiores virtudes, entenda por quê.” da editora Abril, 2013.
O autor entende que em um mundo de menos extremos, expressar a raiva de forma proporcional e propositiva é uma forma de mostrar aos outros que há algo de errado e que mudanças são necessárias. A capacidade de olhar os problemas e ficar indignado continua sendo força propulsora para a luta por um mundo mais justo.
Juliana Chinem é Advogada e Escritora. Sócia de Bernardi & Schnapp Advogados e Mediadora certificada pela ESA OAB/SP. Autora do livro “Coaching de Oratória” pela Ed. Matrix e coautora do livro “Manual de Coaching para Advogados” pela OAB/ESA São Paulo, dentre outras obras. Coordenadora de Oratória e Comunicação da Comissão Especial de Empreendedorismo Legal da OAB/SP e Diretora Adjunta da Comissão de Gestão de Escritórios de Advocacia da OAB Jabaquara.